12/10/2013

Na Grécia antiga a escrita reestrutura a consciência.

Na Grécia antiga a influência das tecnologias sobre os processos de pensar, aprender e se relacinar já eram preocupação entre os filósofos? http://walter-ong.wikispaces.com/Resumo+Cap.+4



  Capítulo 4 
ONG, Walter J., Orality and Literacy - The Technologizing of the Word, London-Methuen
O NOVO MUNDO DO DISCURSO AUTÓNOMO
Mais do que qualquer outra invenção, a escrita transformou a consciência humana. Nas culturas antigas e, até hoje, onde há poucos recursos tecnológicos, a memória cultural é resgatada através do discurso autónomo. Com o aparecimento da escrita tudo mudou. O discurso autónomo não é exclusivo da cultura escrita, pois nas culturas orais já existiam formas de discurso, como profecias transmitidas pelo enunciador, mas não provinham deste.
PLATÃO, A ESCRITA E OS COMPUTADORES
A escrita, diz Platão através de Sócrates, em Fedro, é inumana, destrói a memória, enfraquece a mente, assim como as calculadoras, que aliviam as pessoas do trabalho de memorizar. Estas mesmas observações foram posteriormente retomadas como críticas à imprensa e, mais recentemente, aos computadores. O ponto fraco da opinião de Platão foi que, para tornar essas opiniões convincentes, tinha que pô-las por escrito e imprimi-las a fim de efectivar suas objecções. A escrita, a impressão e o computador são meios de tecnologizar a palavra.
Um dos maiores paradoxos inerentes à escrita é a sua associação com a morte. O seu afastamento do mundo da vida quotidiana, a sua rígida fixidez visual, garante a sua durabilidade e o seu potencial para ser ressucitada em contextos vivos, ilimitados por um número infinito de leitores vivos. Paradoxalmente, as mesmas características da escrita garantiram a imortalidade às ideias de Platão.
A ESCRITA É UMA TECNOLOGIA
Platão pensava na escrita como uma tecnologia externa, hostil, como muitas pessoas actualmente o fazem em relação ao computador, pois a escrita, principalmente a alfabética, é uma tecnologia que exige outros equipamentos como estiletes, pincéis, superfícies cuidadosamente preparadas, peles de animais, tiras de madeiras, entre outros.
A fala brota do inconsciente, naturalmente, ao passo que a escrita é artificial, segue regras rígidas, que precisam ser aprendidas e previamente estabelecidas. No entanto, a escrita serve para elevar os potenciais humanos, aumentar e alimentar a consciência, como nenhuma outra ferramenta. Mas, para compreender a escrita como tecnologia, é necessário compreendê-la em relação ao seu passado, à oralidade.
O QUE É “ESCRITA” OU “SISTEMA DE ESCRITA” ?
A escrita, a mais importante das invenções humanas, é uma tecnologia recente atendendo ao percurso histórico da civilização humana. Enquanto componente basilar da formação e estruturação do pensamento humano foi, no entanto, antecedida, durante largos milénios e em diferentes sociedades, espaços temporais e localizações geográficas, pela profusão de dispositivos e auxiliares de memória, através dos quais eram utilizadas representações que, podendo ser pictográficas, tinham como objectivo retratar objectos, elementos da natureza ou acontecimentos importantes do quotidiano. À luz de uma identificação mais rigorosa do termo, a escrita é algo de mais complexo que ultrapassa a simples produção ou utilização restrita de marcas ou representações visuais com significado exclusivo para o seu criador. A escrita, na plenitude do seu significado, só surgiu quando foi concebido um sistema de código de marcas visíveis codificadas, as palavras, assente num conjunto de convenções, usadas para representar graficamente os sons da fala. Ao registar o som de uma forma exacta, a escrita emancipou-se da oralidade, possibilitando o desenvolvimento, produção e complexificação de um maior número de estruturas e referências linguísticas, e a visão assumiu-se como o novo centro sensorial de transformação do discurso e do pensamento humano.
No entanto, mesmo com a introdução do alfabeto torna-se necessário, em certas situações, contextualizar o exacto significado do que se lê ou do que se ouve.
MUITOS SISTEMAS DE ESCRITA, MAS APENAS UM ALFABETO
A maioria dos sistemas de escrita, que por todo o mundo se têm desenvolvido, remonta a uma espécie de escrita pictórica, ou, num nível mais elementar, ao uso de sinais. É o caso da escrita cuneiforme dos sumérios, o mais antigo de todos os escritos conhecidos, usado, originalmente, com objectivos económicos e administrativos nas sociedades urbanas. A escrita com fins estéticos e literários só muito mais tarde ocorreu. A comunicação de tipo pictográfico não se desenvolveu verdadeiramente num sistema de escrita, porque o código permaneceu demasiado vago, no que respeita aos sentidos pretendidos. Por outro lado, as representações dos vários objectos podiam servir, simplesmente, como memorandos alegóricos para certos grupos que lidavam com assuntos restritos.
A partir dos pictógrafos, desenvolveram-se outro tipo de símbolos nos sistemas de escrita. Um deles é o ideográfico, em que o significado da palavra é o conceito não directamente representado pela imagem, mas estabelecido através de um código. Outro tipo é o logogrifo, espécie de fonograma (som-símbolo), no qual o som é designado por uma imagem de uma das diversas coisas que o som significa. Todos os sistemas pictóricos, mesmo com ideográficos e logogrifos, requerem a utilização de muitos símbolos. O chinês é o mais complexo, necessitando, por isso, de muito tempo de aprendizagem e é elitista.
Algumas linguagens são escritas em silabários (japonês Katana), nas quais cada signo representa uma consoante seguida de um som de vogal. Mas, a maioria dos sistemas de escrita, à excepção do alfabeto, são, na realidade, sistemas híbridos, misturando dois ou mais princípios (pictogramas, logogrifos, silabários).
O alfabeto foi inventado por um povo ou povos semíticos, por volta de 1500 a.c., na mesma região onde surgiu o cuneiforme, mas 2 mil anos depois. Todos os alfabetos do mundo, ainda que com algumas variantes, derivam do semítico. O sistema de escrita semítico é um alfabeto de consoantes (e semivogais) que os leitores, à medida que lêem, complementam com a vogal adequada. Os gregos, ao desenvolverem o primeiro alfabeto completo, com vogais, assumiram uma importância crucial e uma superioridade intelectual face às restantes culturas antigas e ao alfabeto semítico, em particular. Através duma transformação quase total da palavra, de sonora para visual, o alfabeto grego não só se tornou num sistema democrático, ao facilitar a aprendizagem, como ainda internacional, no sentido que podia ser usado para escrever ou ler em línguas estrangeiras. Para além disso, a estrutura de língua grega, assente numa forte capacidade de abstracção, uma vez que analisa todo o espectro sonoro em equivalentes visuais, favoreceu o pensamento analítico/ abstracto.
A razão pela qual o alfabeto foi inventado tão tardiamente, e uma só vez, tem a ver com a natureza efémera do som. Embora derive dos pictogramas, perdeu toda a ligação com as coisas como coisas, representa o próprio som como coisa.
Em suma, o alfabeto fonético, inventado pelos semitas e aperfeiçoado pelos gregos, é o mais adaptável de todos os sistemas. Pode ser o menos estético, quando comparado com os estilizados caracteres chineses, contudo, é um sistema de escrita mais democrático. Disso é exemplo o caso histórico da Coreia do Sul, em que um alfabeto inventado para o coreano em 1443 d.c. pelo rei Sejong da dinastia Yi, só veio a ganhar ascendência, face à escrita ‘séria’ de caracteres chineses, no século XX, com a actual democratização do país.
O INÍCIO DA LITERACIA
A escrita, ao ser introduzida pela primeira vez em sociedade iletradas, adquire diferentes significados e implicações. Conotados com propriedades de poder, magia, mistério, religiosidade ou imortalidade, os textos escritos tanto eram objectos de culto, alvo de profunda devoção, como temidos pelos perigos desconhecidos que representavam. Nas diferentes sociedades, o acesso à literacia estava reservado a um segmento muito restrito de indivíduos ou classes. Figuras de relevo identificadas com o poder, gurus, membros do clero, entre outros, mediavam e controlavam o acesso à informação escrita. Numa fase posterior, surgem os especialistas da escrita (os artesãos ou escribas), detentores do conhecimento tecnológico especializado da escrita, que prestavam serviços comerciais a quem deles necessitasse, numa época em que a alfabetização não era considerada uma prioridade.
Só quando a escrita foi disseminada a diferentes indivíduos de uma sociedade e posteriormente interiorizada nas suas práticas, é que adquiriu a dimensão crítica necessária, capaz de gerar novos processos de pensamento.
Outro factor que predeterminou o uso restrito da escrita, nos primórdios da literacia, resultou das dificuldades técnicas e do elevado grau de especialização necessários para a produção de documentos escritos. Numa altura que não existia papel ou caneta, o domínio da tecnologia da escrita só estava ao alcance daqueles que dominavam os processos da escrita (os escribas), assente em materiais de difícil manejo, acesso e aquisição, recolhidos na natureza.
O avanço tecnológico dos suportes da escrita (em especial a invenção do papel), que democratizou o seu uso, e o progressivo aumento da literacia permitiram que a escrita se demarcasse da influência directa da oralidade. Nesse sentido, facilitou o aparecimento de uma linguagem própria, mais estruturada e longa, precursora de novos processos de pensamento, diferentes daqueles proporcionados pelo discurso oral.

Nenhum comentário:

Postar um comentário