Na Grécia antiga a influência das tecnologias sobre os processos de pensar, aprender e se relacinar já eram preocupação entre os filósofos? http://walter-ong.wikispaces.com/Resumo+Cap.+4
Capítulo 4
ONG, Walter J., Orality and Literacy - The Technologizing of the Word, London-Methuen
O NOVO MUNDO DO DISCURSO AUTÓNOMO
Mais do que qualquer outra invenção, a escrita transformou a consciência
humana. Nas culturas antigas e, até hoje, onde há poucos recursos
tecnológicos, a memória cultural é resgatada através do discurso
autónomo. Com o aparecimento da escrita tudo mudou. O discurso autónomo
não é exclusivo da cultura escrita, pois nas culturas orais já existiam
formas de discurso, como profecias transmitidas pelo enunciador, mas não
provinham deste.
PLATÃO, A ESCRITA E OS COMPUTADORES
A escrita, diz Platão através de Sócrates, em Fedro, é inumana, destrói a
memória, enfraquece a mente, assim como as calculadoras, que aliviam as
pessoas do trabalho de memorizar. Estas mesmas observações foram
posteriormente retomadas como críticas à imprensa e, mais recentemente,
aos computadores. O ponto fraco da opinião de Platão foi que, para
tornar essas opiniões convincentes, tinha que pô-las por escrito e
imprimi-las a fim de efectivar suas objecções. A escrita, a impressão e o
computador são meios de tecnologizar a palavra.
Um dos maiores paradoxos inerentes à escrita é a sua associação com a
morte. O seu afastamento do mundo da vida quotidiana, a sua rígida
fixidez visual, garante a sua durabilidade e o seu potencial para ser
ressucitada em contextos vivos, ilimitados por um número infinito de
leitores vivos. Paradoxalmente, as mesmas características da escrita
garantiram a imortalidade às ideias de Platão.
A ESCRITA É UMA TECNOLOGIA
Platão pensava na escrita como uma tecnologia externa, hostil, como
muitas pessoas actualmente o fazem em relação ao computador, pois a
escrita, principalmente a alfabética, é uma tecnologia que exige outros
equipamentos como estiletes, pincéis, superfícies cuidadosamente
preparadas, peles de animais, tiras de madeiras, entre outros.
A fala brota do inconsciente, naturalmente, ao passo que a escrita é
artificial, segue regras rígidas, que precisam ser aprendidas e
previamente estabelecidas. No entanto, a escrita serve para elevar os
potenciais humanos, aumentar e alimentar a consciência, como nenhuma
outra ferramenta. Mas, para compreender a escrita como tecnologia, é
necessário compreendê-la em relação ao seu passado, à oralidade.
O QUE É “ESCRITA” OU “SISTEMA DE ESCRITA” ?
A escrita, a mais importante das
invenções humanas, é uma tecnologia recente atendendo ao percurso
histórico da civilização humana. Enquanto componente basilar da formação
e estruturação do pensamento humano foi, no entanto, antecedida,
durante largos milénios e em diferentes sociedades, espaços temporais e
localizações geográficas, pela profusão de dispositivos e auxiliares de
memória, através dos quais eram utilizadas representações que, podendo
ser pictográficas, tinham como objectivo retratar objectos, elementos da
natureza ou acontecimentos importantes do quotidiano. À luz de uma
identificação mais rigorosa do termo, a escrita é algo de mais complexo
que ultrapassa a simples produção ou utilização restrita de marcas ou
representações visuais com significado exclusivo para o seu criador. A
escrita, na plenitude do seu significado, só surgiu quando foi concebido
um sistema de código de marcas visíveis codificadas, as palavras,
assente num conjunto de convenções, usadas para representar graficamente
os sons da fala. Ao registar o som de uma forma exacta, a escrita
emancipou-se da oralidade, possibilitando o desenvolvimento, produção e
complexificação de um maior número de estruturas e referências
linguísticas, e a visão assumiu-se como o novo centro sensorial de
transformação do discurso e do pensamento humano.
No entanto, mesmo com a introdução do alfabeto torna-se necessário, em
certas situações, contextualizar o exacto significado do que se lê ou do
que se ouve.
MUITOS SISTEMAS DE ESCRITA, MAS APENAS UM ALFABETO
A maioria dos sistemas de escrita, que por todo o mundo se têm
desenvolvido, remonta a uma espécie de escrita pictórica, ou, num nível
mais elementar, ao uso de sinais. É o caso da escrita cuneiforme dos
sumérios, o mais antigo de todos os escritos conhecidos, usado,
originalmente, com objectivos económicos e administrativos nas
sociedades urbanas. A escrita com fins estéticos e literários só muito
mais tarde ocorreu. A comunicação de tipo pictográfico não se
desenvolveu verdadeiramente num sistema de escrita, porque o código
permaneceu demasiado vago, no que respeita aos sentidos pretendidos. Por
outro lado, as representações dos vários objectos podiam servir,
simplesmente, como memorandos alegóricos para certos grupos que lidavam
com assuntos restritos.
A partir dos pictógrafos, desenvolveram-se outro tipo de símbolos nos
sistemas de escrita. Um deles é o ideográfico, em que o significado da
palavra é o conceito não directamente representado pela imagem, mas
estabelecido através de um código. Outro tipo é o logogrifo, espécie de
fonograma (som-símbolo), no qual o som é designado por uma imagem de uma
das diversas coisas que o som significa. Todos os sistemas pictóricos,
mesmo com ideográficos e logogrifos, requerem a utilização de muitos
símbolos. O chinês é o mais complexo, necessitando, por isso, de muito
tempo de aprendizagem e é elitista.
Algumas linguagens são escritas em silabários (japonês Katana), nas
quais cada signo representa uma consoante seguida de um som de vogal.
Mas, a maioria dos sistemas de escrita, à excepção do alfabeto, são, na
realidade, sistemas híbridos, misturando dois ou mais princípios
(pictogramas, logogrifos, silabários).
O alfabeto foi inventado por um povo ou povos semíticos, por volta de
1500 a.c., na mesma região onde surgiu o cuneiforme, mas 2 mil anos
depois. Todos os alfabetos do mundo, ainda que com algumas variantes,
derivam do semítico. O sistema de escrita semítico é um alfabeto de
consoantes (e semivogais) que os leitores, à medida que lêem,
complementam com a vogal adequada. Os gregos, ao desenvolverem o
primeiro alfabeto completo, com vogais, assumiram uma importância
crucial e uma superioridade intelectual face às restantes culturas
antigas e ao alfabeto semítico, em particular. Através duma
transformação quase total da palavra, de sonora para visual, o alfabeto
grego não só se tornou num sistema democrático, ao facilitar a
aprendizagem, como ainda internacional, no sentido que podia ser usado
para escrever ou ler em línguas estrangeiras. Para além disso, a
estrutura de língua grega, assente numa forte capacidade de abstracção,
uma vez que analisa todo o espectro sonoro em equivalentes visuais,
favoreceu o pensamento analítico/ abstracto.
A razão pela qual o alfabeto foi inventado tão tardiamente, e uma só
vez, tem a ver com a natureza efémera do som. Embora derive dos
pictogramas, perdeu toda a ligação com as coisas como coisas, representa
o próprio som como coisa.
Em suma, o alfabeto fonético, inventado pelos semitas e aperfeiçoado
pelos gregos, é o mais adaptável de todos os sistemas. Pode ser o menos
estético, quando comparado com os estilizados caracteres chineses,
contudo, é um sistema de escrita mais democrático. Disso é exemplo o
caso histórico da Coreia do Sul, em que um alfabeto inventado para o
coreano em 1443 d.c. pelo rei Sejong da dinastia Yi, só veio a ganhar
ascendência, face à escrita ‘séria’ de caracteres chineses, no século
XX, com a actual democratização do país.
O INÍCIO DA LITERACIA
A escrita, ao ser introduzida pela
primeira vez em sociedade iletradas, adquire diferentes significados e
implicações. Conotados com propriedades de poder, magia, mistério,
religiosidade ou imortalidade, os textos escritos tanto eram objectos de
culto, alvo de profunda devoção, como temidos pelos perigos
desconhecidos que representavam. Nas diferentes sociedades, o acesso à
literacia estava reservado a um segmento muito restrito de indivíduos ou
classes. Figuras de relevo identificadas com o poder, gurus, membros do
clero, entre outros, mediavam e controlavam o acesso à informação
escrita. Numa fase posterior, surgem os especialistas da escrita (os
artesãos ou escribas), detentores do conhecimento tecnológico
especializado da escrita, que prestavam serviços comerciais a quem deles
necessitasse, numa época em que a alfabetização não era considerada uma
prioridade.
Só quando a escrita foi disseminada a diferentes indivíduos de uma
sociedade e posteriormente interiorizada nas suas práticas, é que
adquiriu a dimensão crítica necessária, capaz de gerar novos processos
de pensamento.
Outro factor que predeterminou o uso restrito da escrita, nos primórdios
da literacia, resultou das dificuldades técnicas e do elevado grau de
especialização necessários para a produção de documentos escritos. Numa
altura que não existia papel ou caneta, o domínio da tecnologia da
escrita só estava ao alcance daqueles que dominavam os processos da
escrita (os escribas), assente em materiais de difícil manejo, acesso e
aquisição, recolhidos na natureza.
O avanço tecnológico dos suportes da escrita (em especial a invenção do
papel), que democratizou o seu uso, e o progressivo aumento da literacia
permitiram que a escrita se demarcasse da influência directa da
oralidade. Nesse sentido, facilitou o aparecimento de uma linguagem
própria, mais estruturada e longa, precursora de novos processos de
pensamento, diferentes daqueles proporcionados pelo discurso oral.